terça-feira, 19 de julho de 2005

Histórias da caserna...

História levemente inspirada num sonho que tive... é longa, mas espero que pelo menos um de vocês chegue a terminá-la. E espero que gostem... deixem suas opiniões, por favor! Abraços.



09 dormia tranquilo, dentro do possível, no beliche da 2ª CIA do Nono Batalhão de Infantaria Motorizado. Debaixo dos pesados cobertores de carpete, ainda calçava os coturnos à espera da ronda das quatro.

Seu colega de alojamento naquela noite, o número 05 acabara de retornar de sua caminhada noturna para certificar-se de que o QG àquela hora não estava "sendo invadido". Sentou-se no banco da sala dos armários, precariamente pintado de verde oliva retirou a pistola do coldre. Puxou a parte superior do cano, retirando a bala que estava na agulha. Por mais perigoso que fosse, ele sempre fazia suas rondas com a arma engatilhada e com um projétil pronto para ser percurtido. Caminhou até seu beliche, retirou seus coturnos, respirou aliviado e deitou-se. Não arriscou tirar mais nenhuma peça do seu enfardamento, dado o frio cortante que fazia na sala, vindo de uma janela quebrada. Cobriu-se com o cobertor e ainda excitado pela ronda, ficou observando invejoso, o sono do companheiro ao lado. Eventualmente, seus olhos acabaram se fechando e seus pensamentos começaram a ganhar consciência própria.

A esta altura, 09 já tinha sonhos estranhos e seu corpo se contorcia sobre a cama. Falava palavras sem sentido, números e "sim senhor". Começava a suar e seus pés presos e amarrados ao rígido calçado pulsavam clamando por descanso. A sucessão de movimentos começou a aumentar, até que 09 acordou em um ato brusco, respiração ofegante e olhar agitado. Colocou seus óculos de leitura, retirou do bolso, um lápis que sempre carregava na gandola e sem muitas opções começou a escrever na parede, sussurrando para si mesmo o conteúdo de sua escrita. Estava tão concentrado em tal ato que nem sequer o interrompeu ao disparar o despertador sinalizando as quatro da manhã. O barulho insistente continuou, até acordar 05, que abriu os olhos e calado observou o colega fazer suas anotações. Em alguns segundos, 09 fez um último movimento, largou o lápis e desligou o despertador.

Ergueu-se da cama, foi até seu armário, vestiu o suspensório com o coldre. Verificou sua pistola, contou minuciosamente sua munição, colocando-a no pente. Sempre correto, carregou a arma, mas ao contrário do colega, não engatilhou e manteve a trava de segurança. Deu um gole em um café gelado e partiu para sua caminhada. 05 ouvia tudo, e percebendo a partida do amigo rondante das quatro, levantou-se de sua cama e curioso foi ler o escrito na parede. Ligou a lanterna, e surpreso, viu uma estranha seqüência de números. Riu sozinho e imaginou que seria uma boa história para contar aos colegas de pelotão no dia seguinte. Mais uma das várias que o estranho 09 já havia aprontado na caserna. Procurou por alguns minutos algum significado naquilo tudo, relacionando os números aos colegas. Eram seis números de dois dígitos. Seriam estes os números de seis soldados contra quem 09 tramava algum plano mirabolante? Estariam ali, tatuados na parede os que sofreriam com uma repentina fúria vingativa de 09, "o estranho"?

Tomado por estes pensamentos sonolentos, resolveu verificar a seqüência uma segunda vez. Surpreendeu-se então ao ver que o último número da série era o seu: 05! Ainda paranóico, correu até seu armário, pegou um lápis e uma borracha, voltou ao alojamento e apagou somente o seu identificador. Escreveu no mesmo lugar, o número 18, referente a um soldado com quem não tinha afinidade alguma. Mais aliviado, voltou à sua cama, antes da chegada do agora temido companheiro. Pensou em tudo o que acabara de fazer e deixou escapar um leve sorriso, tanto de satisfação por salvar sua vida caso tudo se consumasse, quanto de deboche a si próprio por imaginar história tão sórdida e mirabolante, e principalmente um 09 vingativo e violento. Com a mente cansada, voltou a dormir de forma tão profunda que sequer ouviu a chegada do soldado.

05 acordou por vota de seis e meia da manhã. Olhou ao redor e a cama de 09 já estava devidamente pronta, com o cobertor em forma de gravata, obedecendo minuciosamente o padrão de arrumação estabelecido para aquela semana. Olhou a parede e lá não estavam mais os números. "Com certeza 09 já escreveu tudo no seu caderninho", pensou. Calçou os coturnos, passou-lhes um pano para tirar a sujeira e se dirigiu ao banheiro. Lá encontrou o colega. 09 com o rosto tomado por pequenas feridas e pedaços de papel higiênico por toda a face, soltou um "bom dia" tímido. Não obteve resposta. Continuou então, a dolorosa tarefa de fazer a barba, onde não tinha nenhum pêlo a ser cortado. Ao contrário de 05, era magro e franzino, o que lhe obrigava a ser um soldado exemplar em tarefas mais "intelectuais", como polir o couro das botas e passar impecavelmente sua farda com o ferro, fazendo todos os vincos e dobras previstos nos manuais.

Feita a higiene matinal, tomaram seu café na cantina sem trocar nenhuma palavra. 05 sentia um certo desconforto ao lado do colega. Achava seus modos engraçados e preferia não ser visto e muito menos ter seu número ligado de forma alguma ao do estranho. "Seria mesmo bom que 09 fosse realmente um louco psicopata" pensou. Só assim para evitar um ano inteiro de rondas e serviços com a figura - punição estabelecida aos dois pelos seus constantes desentendimentos durante o expediente.

Com a chegada do resto do pelotão, os dois acabaram se separando. 05 com seus colegas de excelente porte físico a debochar de 09 e seus companheiros fisicamente debilitados. Tiveram um dia comum no QG. Fizeram corridas, ordem unida, instruções em sala de aula. Para a alegria de 09, a tarde passou rápido. Prestaram continência à bandeira, foram apresentados ao oficial do dia e foram liberados.

Em casa, 05 ligou para a namorada, jantou com os pais e sentou-se na sala para assistir tv. Sentia-se bem ali. Não precisava esconder de ninguém que seu corpo estava bastante cansado. Dias de serviço sempre o deixavam assim, além do péssimo colchão onde era obrigado a dormir. Passou de canal em canal pelos telejornais até encontrar um programa de auditório. Não queria saber de notícias e tragédias, queria apenas se divertir e esquecer o 09 e seus números na parede. Desta maneira, sentado no sofá aconchegante, não demorou muito para caír no sono.

Entrou no batalhão, estava estranhamente deserto. Nenhum soldado nos portões, nenhum oficial para se apresentar. Imaginou que estavam todos em reunião em algum lugar. Olhava as paredes dos prédios com sua pintura já descascando. Tudo parecia mais velho, como se há anos não entrasse lá. As árvores estavam enormes e alguns galhos subiam as paredes da 1ª CIA. Olhou ao redor e assustou-se ao perceber que sua farda não estava completa. Usava uma camiseta colorida em vez da tradicional camuflada, seus coturnos estavam sem brilho e rasgados e sua barba estava por fazer. Correu então em direção ao alojamento da sua 2ª CIA antes de ser visto por qualquer oficial e receber a punição devida por tal infração. Corria com um esforço tremendo. O batalhão nunca lhe parecera tão extenso. Sentia como se movesse em slow motion. Chegando próximo de seu destino, já podia ouvir gritos de seus colegas. Temendo mais a punição do que qulaquer perigo no interior do prédio, abriu a porta e deparou-se com 09 enfurecido, totalmente transformado. Seus olhos pareciam saltar da órbita, vermelhos e com os vasos quase cobrindo a íris. Ele segurava sua nove milímetros e falava em números. Sua voz carregava um tom bizarro, lembrava um cronista de rádio, ou televisão. A cada número que olhava em seu caderninho, chamava e um soldado apresentava-se para ser alvejado com tiros sem misericórdia. A sala ia se pintando de sangue. 09 chamou o segundo, o terceiro, até chegar ao sexto soldado de número 18, que ele gritava com um tom de alegria e satisfação. Ao final da chacina, 05 estranhamente ouviu aplausos e finalmente deu-se conta de estar sonhando.

Acordou em sua sala, com o corpo quente e tranquilizado ao livrar-se de tal pesadelo, mas estranhamente continuava ouvindo a bizarra voz do 09 de seu sonho, que só agora identificava no apresentador da televisão. Esfregou os olhos e ainda conseguiu ver o fim de um sorteio. Viu seis números. E o último, fora sua contribuição.

Uma bela moça diz que o sorteado morava no estado mais ao sul do país e levava mais de quarenta milhões em dinheiro.

05 nunca mais viu 09.

9 comentários:

Leonardo Furtado disse...

no problem...

depois eu comento sobre o teu texto quilométrico

Anônimo disse...

ha! adorei o conto. acho que podes chamá-lo assim. fiquei imaginando como foi exatamente teu sonho... eras o 09? eras o 05? hehehehe
lembrei do teu tcc também. :) muito bom, amigo-urso.

Leonardo Furtado disse...

ótimo texto, prende a atenção do leitor

samanta disse...

tb achei legal, o suspense é bem feito, não dá pra parar de ler. só um 'probleminha'; pras pessoas sem memória e confusas (eu! eu!) é difícil não confundir... eu sempre esquecia quem era o 5 ou o 9... =]

Anônimo disse...

Muito bom o teu conto... bem construído, transparente e, sobretudo, a descrição dos detalhes!

Anônimo disse...

Mas una cosita... a certa altura do conto, me fez lembrar de "Nascido para matar " do Kubrick... hehe... jóia... abraços

pablodelarocha disse...

Sam: a idéia é essa...
Diego: a idéia é essa...
uehuehuehuhe
queria fazer um troço meio confuso mesmo, meu sonho foi da mesma maneira... em algumas horas eu era o cara q escrevia na parede, em outras eu era o q trocava os números...
esquizofrenia total

Ana Margarites disse...

ahn, aqui tô eu comentando 10 anos depois.
cara, curti muito esse conto.
esse final me suprpreendeu mesmo!
acho que tu tens talento para a coisa, e eu gostaria muito de ler outros contos desse tipo :)
um beijão

pablodelarocha disse...

valeu todo o pessoal q comentou, criticou ou elogiou!!
fico feliz q tenham lido tudo!!

qualquer hora escrevo outro conto e coloco por aqui...